segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Como tudo começou – 2

Um Furo na Lona

Domingo. Tarde quente no interior paulista. O asfalto fumegava às quatorze horas. De longe, olhava a lona, quadras adiante. Vontade de ir ao circo. A placa escrita com alvaiade anunciava. Próximo domingo: concurso de bonecas. Ao voltar da escola, olhei minha bonequinha encardida da terra do quintal. Suas sensuais pernas de borracha calçavam um miúdo sapato branco de plástico, com um lacinho em cima. Sua única roupa era uma saia evasè azul-claro e uma blusa xadrez sem manga, em tons de azul e rosa. Pensei no concurso e... olhando para ela pensei: - nem tentar. Comecei a brincar. Ela ia se arrumar para um baile. O lencinho verde, de seda  muito fina, serviu para criar um manto preso ao cabelo. Resolvi dar banho, e consegui aos poucos alvejar a sujeira. Lavei a miúda roupa e enquanto secava ela ficou despida e coberta em sua cama de caixa de sapato. Lição de casa, enxugar louça, jantar, dormir, acordar e ir a escola, voltar, vestir a boneca, foi o que se sucedeu. Fiz um pequeno colar de vidrilhos e pulseirinha de miçangas. Penteei seus cabelos sintéticos, amarrei o lenço de seda cobrindo até os pés. Achei pouco e bordei a blusa, também com vidrilhos. Depois a saia também pediu enfeites. Terça, quarta, quinta, sexta, sábado... e a boneca estava pronta. No domingo, o almoço à mesa e quatorze pessoas em volta. Pedi para ir ao circo. Resposta: - Não. Ninguém queria ir. Só eu. Sozinha? Nem pensar em insistir. O remédio foi cair em prantos. Quem não chora não mama. Minha irmã resolveu ir também e mamãe acabou deixando. Ela era arruaceira, juntou mais umas colegas e fomos. O circo? Furreco!!! Cadeiras sobre serragem. Sentamos: eu, a boneca e a turma da Jane. Olhei para os lados, umas trinta crianças com bonecas. Acho que não vou! Claro que vai! Na hora do concurso o palhaço berrava: - É essa?! E o público respondia: - Éé!... Ou: - Nããão! Com a berraria do palhaço, iam desclassificando-se as bonecas. A minha foi ficando, graças à torcida da Jane. No final ficaram duas: a minha minúscula e outra gigantesca, ricamente ornamentada com saias de feltro e apliques de flores. A dona quase que sumia atrás da bonecona. E na hora dos berros do palhaço: - É essa ??? – Ergui o braço levantando a bonequinha para o alto. Em lona de circo velha entra chuva, mas também entra sol. O facho de luz que varou a lona incidiu sobre minha princesa, reluzindo os vidrilhos. E o público: Ééééé’!... Ganhei dois cruzeiros!!! Voltei feliz. Fim de domingo. Todas as outras vitórias que tive ao longo da vida foram exatamente como esta primeira.

Élsie da Costa – baseada em história verídica ocorrida em Tanabi – SP, em 1967.

Nenhum comentário:

Postar um comentário